domingo, 8 de março de 2009

Caixa Preta

14/04/2004

Um PACTO. Ele foi desenhado assim em meu corpo, com letras maiúsculas. Ainda sinto minha pele sendo rasgada milimetricamente por uma lâmina abrasante. Ainda vejo a fumaça subir. Com fogo. Cheiro de carne queimando.

Um corpo novo riscado sobre meu corpo. Eu o desejei. Eu o tive. Meu corpo reinventado exatamente como eu cobiçava. Etapa a etapa. Aqueles olhos castanhos se sobrepuseram aos negros dos meus. Ah, aqueles olhos tinham mel. Quis prová-los com a língua. Eram exatamente doces. Desde então meu olhar nunca mais foi meu. E aqueles lábios? Sim, eles também reinventaram os meus. Eram maduros tais quais frutas vermelhas. Deles destilavam um néctar celestial, do qual à medida que eu me servia sentia-me narcotizar. Lentamente fui percebendo um desenho de outra boca substituindo a minha. Com fogo. Cheiro de carne queimando.

Diante do espelho via outro rosto. Aquele rosto não era meu, mas já era eu. Cada dia uma nova parte de meu corpo era remodelada. Metamorfose. Um outro ser mergulhava em mim. Cabeça, pescoço, peito, barriga, sexo... Sim, até o sexo foi reinventado. Com ele eu ganhei e me perdi. Já nem sei ao certo se fui eu que me penetrei ou se penetraram em mim. Com fogo. Cheiro de carne queimando.

Um outro ser, um outro corpo sendo definitivamente desenhado em mim. Tatuagem. Meu corpo e novos traços. Adquiri novas pernas e pés, mas perdi o comando sobre eles. Aonde me levavam? Ao céu? Ao inferno? “Sem escolhas, lembra?”. Nada era meu. Tudo era eu. Novos sentidos e não sentidos. O que ganhei? O que perdi? Um corpo novo tatuado sobre o meu. Com fogo. Cheiro de carne queimando. Este corpo, no entanto, era oco. E comecei a sentir o vazio mergulhar em mim. Sentia? Não! Eu não sentia! “Sem sentidos, lembra?”. Os pés e as pernas já não sustentavam o novo corpo. Do sexo foi extinta toda sensibilidade. Um vento frio soprou na barriga. No peito, uma caixa preta. Minha alma era arrancada com força. Ela não cabia neste novo corpo. Senti-me afogar em mim. Debater-me sobre mim. Desesperadamente. Respirar... Respir...ar... Res...pi...rar... Res... Um último e longo suspiro. Pacto cumprido.

“Pertencer ao outro eternamente. Com fogo. Cheiro de carne queimando”.


Por Aline D’Eça
Em 14/04/2004

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