21/04/2004
Seis e meia. Ele sempre chega quando o relógio marca este horário. Trinta minutos depois da Ave Maria. Acabo de rezar o terço, desligo o rádio, passo o café, ponho a mesa para o jantar e vou para a janela. Escondida pela cortina, observo ele bater bruscamente a porta do carro e entrar mal-humorado em casa. Nem toma banho, senta na poltrona, liga a televisão e põe os pés com as botinas sujas sobre a mesinha da sala. Sua esposa surge apressada após ouvir os gritos. Nunca está arrumada. Não precisa, quase nunca sai de casa, nem recebe visitas. Ela sempre usa bobes nos cabelos e vestidos velhos. Traz, com grande afã, um copo e uma cerveja. Por que sempre traz o copo? Ele nunca toma de outro jeito: põe a boca no gargalo e bebe.
Passada uma hora, ele levanta e se dirige à sala de jantar. Parece esfomeado. Não sei ao certo o que acontece, não consigo ver pela janela, mas depois de alguns instantes a mulher começa a chorar. Ele bate nela e manda-a chorar baixinho, caso contrário baterá mais. Um selvagem! Homem forte, barba por fazer, está sempre suado, cheirando a óleo e a cerveja. Um covarde! E sua mulher tão frágil e burra. Sim, burra... Como pode continuar casada com um animal daquele?
Aquela pobre mulher apanha muito. Todos os vizinhos sabem, mas ninguém toma uma atitude! Isso me indigna. Eu, porém, nada faço... Pego o telefone às vezes, mas não consigo chamar a polícia... Pobre coitada, a encontrarei na missa de domingo. Calada, valendo-se de um véu sobre o rosto para esconder as marcas roxas, terá pressa. Como de costume, pegará suas três crianças e voltará para casa, sem poder conversar.
Meu marido chegou. Já são oito horas. O Osvaldo sempre me traz flores e dá um beijo em minha testa. Minha pequena, como foi seu dia? Sempre gentil e delicado comigo. Tenho sorte em tê-lo como companheiro. Meu marido me ama, seria incapaz de erguer a voz para mim, quanto mais me bater. Jantamos e depois de ajudar-me com a louça, ele me chama para dormir. O Osvaldo trabalha muito, está sempre estafado, dorme rapidamente. Sou feliz com ele. Fazemos amor uma vez por semana, aos sábados. Aos domingos, depois da missa, almoçamos na casa de sua mãe.
Toca a Ave Maria e em meia hora o vizinho chega. Tudo se repete. Já tenho cronometrado na minha cabeça. A mulher apanhando... Ele parece ter as mãos pesadas. Bate sem piedade no rosto da pobrezinha. Troglodita! Uma mulher tão frágil, tão franzina... Ela tem marcas roxas no rosto e pelo corpo. Osvaldo nunca me bateria... Espio pela janela. Depois de algum tempo o silêncio impera na casa ao lado. Meu marido chega. É sempre carinhoso e gentil. Trata a mim como uma princesa, sua bonequinha de louça... Nunca me bateria.
Manhã de quarta-feira e volto do mercado. Surpreendo-me ao ver aquele cafajeste cuidando do jardim. Como pode ser tão delicado com as flores e tão estúpido com a mulher? Calafrios. Tive medo do seu olhar. Agachado no jardim, ele percorreu meu corpo de baixo a cima com os olhos... Senti-me despir... Bom dia madame. Gentileza não combina com ele. Porém, ajudou-me com as compras. Pude reparar nas suas mãos, tão grandes e grosseiras. Que estrago poderia fazer no rosto de uma mulher... Calafrios. Tive medo, mas não pude rejeitar a ajuda. Deixou as sacolas na varanda, sorriu e voltou para o seu trabalho. A delicadeza realmente não lhe combinava. Um homem como aquele, rude, voraz... Com aquelas mãos... Ai... Se ele me batesse forte na cara, estaria perdida. Bem que eu iria gostar. E gozar.
Por Aline D'Eça
* Uma homenagem ao polêmico e fantástico Nelson Rodrigues
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